Pesquisadores ligados à USP e ao Projeto Coral Vivo deram início ao primeiro mapeamento ambiental do Banco Royal Charlotte, uma grande — e ainda largamente inexplorada — extensão da plataforma continental brasileira, no sul da Bahia. As primeiras imagens submarinas feitas no local sugerem a existência de alguns ecossistemas recifais potencialmente semelhantes aos do vizinho Banco do Abrolhos, que abriga a maior biodiversidade marinha do Atlântico Sul.“É um lugar que, apesar de estar muito próximo de Abrolhos, ainda é muito pouco conhecido”, afirma ao Jornal da USP o professor Paulo Sumida, do Departamento de Oceanografia Biológica do Instituto Oceanográfico (IO) da USP, que coordena o projeto. “Só quem conhece são os pescadores locais.” A presença de pescadores é um forte indicador da presença de ecossistemas recifais na região, visto que várias das espécies capturadas — em especial, a lagosta — dependem de um fundo minimamente consolidado para se abrigar. (Em outras palavras: não poderia ser apenas um fundo de areia, ou essas espécies não conseguiriam sobreviver ali.) Mas faltava um levantamento científico para comprovar isso.
“Fiquei bem impressionado com o que encontramos”, relata Sumida. As imagens confirmam a existência de ecossistemas de fundo consolidado na região, incluindo bancos de rodolitos e recifes de corais.
Visto por imagens de satélite, o banco tem o formato de uma mesa retangular, com cerca de 6 mil quilômetros quadrados — mais ou menos o tamanho do Distrito Federal, incluindo as bordas mais alargadas da plataforma —, entre os municípios costeiros de Belmonte e Porto Seguro.
A ideia, desde o início do ano, era fazer uma expedição científica completa na região, utilizando equipamentos de sonar para mapear digitalmente o fundo do banco, e um veículo submersível de controle remoto (R.O.V, em inglês), para fazer imagens de algumas feições mais interessantes. Por conta da pandemia, porém, a viagem teve que ser revista e quase não saiu do papel.
Para não passar em branco, e desperdiçar o planejamento que havia sido feito, porém, foi acordado que três pesquisadores locais, ligados ao Projeto Coral Vivo na Bahia (Fábio Negrão, Carlos Lacerda e Thais Melo), fariam uma expedição simplificada pela região, armados apenas de algumas câmeras e equipamentos básicos de mergulho (além de máscaras e álcool-gel, para se proteger do coronavírus a bordo). A equipe passou dez dias no mar, em julho, fazendo imagens de 67 pontos ao longo de todo o banco, em profundidades que variaram de 30 a 70 metros.
“Fomos na marra, e na raça, mesmo”, diz o oceanógrafo Miguel Mies, coordenador de pesquisas do Coral Vivo e pesquisador associado do IO-USP. Os pontos de pesquisa foram selecionados com base em imagens de satélite e informações coletadas de “lagosteiros” e pescadores locais, que conhecem a região melhor do que ninguém.
“Não tem indicador melhor de substrato consolidado e tridimensional do que lagostas e serranídeos de grande porte”, afirma Mies, referindo-se à família de peixes que inclui badejos e garoupas — peixes de alto valor comercial e que só são encontrados no entorno de ambientes abrigados, como recifes e costões rochosos.
A metodologia foi simples: em cada ponto selecionado, os pesquisadores lançavam uma câmera de vídeo, presa a um cesto com lastro e um computador de mergulho (para registrar dados básicos, como profundidade e temperatura da água). Deixavam o equipamento filmando por alguns minutos, depois puxavam de volta para o barco e anotavam tudo. A análise das imagens permite identificar, incialmente, quatro tipo de ambientes presentes na região: bancos de rodolitos, florestas de macroalgas (associadas a rodolitos), planícies de areia calcária e recifes de corais. Os rodolitos, às vezes chamados de “rochas vivas”, são estruturas esféricas de origem biogênica (ou seja, produzidas por organismos vivos), construídas por algas calcárias. Eles podem se acumular no leito marinho em grandes quantidades, formando um substrato rígido e tridimensional, capaz de abrigar uma grande variedade de organismos — como algas, esponjas, peixes e uma infinidade de pequenos crustáceos, moluscos e outros invertebrados marinhos. Esses bancos de rodolitos existem em vários pontos da costa brasileira (o do Banco dos Abrolhos é possivelmente o maior do mundo), funcionando como verdadeiros oásis de vida marinha ao longo da plataforma continental.
Em um dos pontos investigados, a cerca de 30 metros de profundidade e já bem afastado da costa, os pesquisadores encontraram um recife de corais do gênero Montastrea. Um recife pequeno, mas com uma abundância e uma variedade grande de peixes (mais de 20 espécies) ao redor dele; o que leva os pesquisadores a deduzir que ele não está sozinho na paisagem. É provável que haja outros recifes por perto, que não apareceram nas imagens — não apenas naquele local, mas também em outros pontos do banco. “É muito peixe para um recife tão pequeno”, avalia Mies. A quantidade, distribuição e extensão desses ambientes como um todo permanecem desconhecidas. Só um mapeamento mais detalhado, com imagens de sonar, poderá revelar o que existe de fato no fundo do Royal Charlotte. “Fizemos essa prévia e já encontramos várias coisas legais, mas tem muito o que pesquisar ainda”, pontua Sumida. Apenas um banco de areia, certamente, já se pode dizer que o Royal Charlotte não é. Para Mies, essa é uma peça importante que faltava no quebra-cabeça ecológico da costa brasileira, para conectar a biodiversidade marinha de Abrolhos, no sul da Bahia, com a do restante do Nordeste, mais ao norte. “Tem tudo para ser uma das áreas mais importantes para a conservação de ambientes recifais no Brasil”, diz.
Fonte: Jornal da USP
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